Os surtos de origem alimentar são um problema global que afeta milhões de pessoas todos os anos. Estes eventos representam uma séria ameaça à saúde pública e à confiança dos consumidores nos alimentos que consomem. Pretendemos explorar a incidência de surtos de origem alimentar em todo o mundo e, posteriormente faremos uma análise do caso de Portugal, com base nos dados disponíveis sobre ocorrências, agentes responsáveis, as suas implicações para a saúde e as medidas de controlo e prevenção. Ao investigar incidentes passados e recentes, procuramos fornecer dados para compreender os riscos, as lacunas nos sistemas de segurança dos alimentos e as estratégias de prevenção e resposta a serem consideradas pelas autoridades de saúde e pelo setor dos alimentos a nível global.
O papel da história e da atualidade na manifestação de doenças veiculadas por alimentos
Existem inúmeras doenças transmitidas por alimentos, em que os agentes causadores são considerados perigos para a segurança dos alimentos. A sua incidência varia consoante a localização geográfica, por exemplo, mas também conforme o período em que é abordado.
Há um século atrás, a tuberculose, a febre tifóide, e a cólera eram doenças transmitidas por alimentos que ocorriam com grande frequência. Contudo, a introdução de medidas de higiene e segurança dos alimentos ao longo das várias etapas da cadeia alimentar permitiram mitigar os seus efeitos na saúde dos consumidores.
No entanto, novos microrganismos patogénicos e contaminantes alimentares continuam a emergir e a conquistar terreno todos os anos, atendendo às alterações climáticas, transformação de hábitos de consumo e à facilidade de deslocações entre vários pontos do mundo.
Surtos de origem alimentar no mundo
Em todo o mundo, os surtos de origem alimentar são uma preocupação crescente de saúde pública. Os dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) estimam que, e acredita-se que sejam dados subvalorizados, existam cerca de 600 milhões de casos de doenças transmitidas por alimentos a cada ano, que resultam em 420 000 mortes. Os surtos são causados por uma variedade de agentes patogénicos, que engloba bactérias, vírus, parasitas e toxinas alimentares e, que podem ocorrer em qualquer fase da cadeia de abastecimento de alimentos. Cerca de 90% das doenças transmitidas por alimentos (DTA) tem origem em agentes biológicos, como bactérias, vírus e parasitas. Estes dados tornam-se mais evidentes quando consideramos que existem mais de 250 tipos de microrganismos que provocam doenças que são transmitidas por alimentos, com diversos graus de gravidade e prevalência.
Agentes responsáveis por surtos globais
Os agentes patogénicos mais comuns associados a surtos de origem alimentar em todo o mundo são a Salmonella, Norovírus, Escherichia coli, Campylobacter e Staphylococcus aureus. Estes agentes podem contaminar uma ampla variedade de alimentos, que vai desde produtos frescos até alimentos processados, sendo que são frequentemente transmitidos pelo consumo de alimentos indevidamente cozinhados, contaminados ou inadequadamente processados.
Surtos de origem alimentar em Portugal
Em Portugal, os surtos de origem alimentar também representam uma preocupação significativa para a saúde pública. Nos últimos anos, foram registados diversos surtos, sendo que alguns apenas afetaram um pequeno grupo pessoas e outros estenderam-se a um número de pessoas maior. As ocorrências têm sido relatadas em diferentes ambientes, onde se incluem indústrias, restaurantes, cantinas, eventos públicos e domicílios. Os surtos são muitas vezes causados por falhas na manipulação, armazenamento ou preparação de alimentos, bem como pela contaminação cruzada durante a produção e distribuição de alimentos.
Retrospetiva do ano 2023
No ano passado, em Portugal, o caso mais marcante de doenças veiculadas por alimentos foi a recomendação de não consumo de broa de milho em várias áreas do país consideradas de risco. O impacto foi tal que o incidente foi comunicado em plataformas de comunicação internacionais, tendo sido notícia, por exemplo na plataforma Food Safety News.
Entre 21 de julho e 9 de agosto foram reportados 187 casos suspeitos de toxinfeção alimentar associados ao consumo de broa de milho. O quadro sintomático desenvolvido passou por secura da boca, alterações visuais, tonturas, confusão mental e diminuição da força muscular. Os sintomas foram observados entre 30 minutos a 2 horas após a ingestão de alimentos. A maioria dos casos apresentaram sintomas ligeiros, sendo que apenas 43 casos necessitaram de cuidados hospitalares. Deste modo, foram implementadas medidas pelas autoridades competentes no sentido da restrição das matérias-primas utilizadas no fabrico da broa de milho. Neste contexto e, tendo em conta a suspeita de toxinfeção alimentar, foi recomendado que se interrompesse o consumo de broa, até que fosse comprovado que o seu consumo era seguro nas áreas geográficas afetadas durante o decorrer da investigação. A investigação envolveu várias autoridades competentes: Departamentos de Saúde Pública das Regiões Centro e Lisboa e Vale do Tejo, DGS (Direção-Geral da Saúde), ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária), DGAV (Direção Geral de Alimentação e Veterinária), INSA (Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge) e INMLCF (Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses).
No total foram registados 209 casos de toxinfeção alimentar, dos quais apenas dois foram registados após a data do primeiro comunicado, a 10 de agosto. A evolução positiva deveu-se à estratégia adotada pelas autoridades competentes e à adesão das medidas estabelecidas pelos operadores económicos e pelos consumidores.
A investigação laboratorial foi direcionada tendo em conta a sintomatologia clínica apresentada pelos casos de toxinfeção alimentar, que era acima de tudo do foro neurológico, atendendo também ao curto período de incubação, a duração dos sintomas, a bibliografia consultada e o contributo dos especialistas. Tanto nas amostras de farinhas como na broa e nos produtos biológicos, sangue e outros fluidos orgânicos das pessoas com sintomas, verificou-se a presença de atropina e escopolamina em níveis muito elevados. Os dados recolhidos demonstraram haver fortes indícios de contaminação das farinhas com sementes de plantas do género Datura, planta infestante que pode estar presente nas plantações de milho. A contaminação por sementes desta infestante pode ocorrer por exemplo durante a colheita do milho. Na sequência desta evidência, a DGAV manifestou vontade de elaborar uma recomendação técnica, a difundir pelos produtores de milho, para um melhor controlo desta infestante nos campos e após colheita. Posteriormente a este acontecimento foi então desenvolvido um Manual de Boas práticas – Controlo de plantas infestantes tóxicas: Caso particular da Datura stramonium L., que visa apoiar a identificação e as boas práticas de controlo de infestantes tóxicas que possam afetar culturas para alimentação humana ou animal.
Surtos com impacto no panorama Europeu
O Norovírus foi determinado como a causa suspeita de um grande surto na Airbus, em França, no final de 2023, de acordo com as autoridades de saúde pública. A agência regional de saúde Loire-Atlantique (ARS) acredita que o Norovírus esteve por trás do adoecimento de quase 700 pessoas no almoço de Natal da Airbus Atlantic, em meados de dezembro. Os resultados baseiam se nos sintomas clínicos apresentados pelos pacientes e no tempo que levaram para aparecer.
O Norovírus pode-se espalhar rapidamente e facilmente através de pessoas doentes e superfícies contaminadas, ou através de alimentos e água contaminados. Uma pessoa geralmente desenvolve sintomas de 12 a 48 horas após a exposição. A maioria das pessoas com doença causada por Norovírus melhora dentro de 1 a 3 dias, mas ainda podem espalhar o vírus.
Nessa altura, em França, foram relatados uma série de surtos ligados a moluscos bivalves, com várias áreas de mariscos fechadas desde dezembro de 2023.
Em Loire-Atlantique, um surto de Norovírus com 40 infeções após o consumo de ostras foi registado em dezembro. Em Ille-et-Vilaine, vários casos de intoxicação alimentar foram ligados a ostras em janeiro e a mesma situação ocorreu em Gironde em dezembro.
O Norovírus em ostras provenientes de França fez com que 15 pessoas na Suécia ficassem doentes e provocou mais 2 casos na Finlândia em janeiro. Na Dinamarca, 32 doentes foram registados em dezembro.
Em França, as ações após um surto incluem o encerramento dos viveiros de ostras por 28 dias e testes semanais de Norovírus até que a área de produção teste negativo.
Para além disso e, mais recentemente em Espanha, um renomado chefe de cozinha foi envolvido e condenado por servir ameijoas cruas contaminadas com Norovírus a 53 convidados em um luxuoso banquete de casamento.
Todas estas ocorrências demonstram a importância do papel que cada operador económico tem para garantir a segurança dos alimentos que entregam e, por isso seguem alguns exemplos a colocar em prática nos estabelecimentos:
– Evitar a contaminação cruzada, como por exemplo o contacto entre alimentos crus e cozinhados;
– Controlar a temperatura de armazenamento dos produtos alimentares, mantendo os alimentos a temperaturas seguras;
– Cozinhar/confecionar bem os alimentos;
– Evitar a ingestão de alimentos indevidamente cozinhados ou crus, principalmente os de origem animal;
– Descascar e lavar cuidadosamente a fruta e os legumes;
– Reforçar a higiene das mãos antes, durante e após a manipulação de alimentos;
– Limpar profundamente as superfícies, os equipamentos e os utensílios que contactam com alimentos;
– Utilizar roupas limpas e proteção adequada, como toucas e aventais, durante a preparação de alimentos;
– Descartar alimentos que não cumpram os requisitos de qualidade e segurança;
– Promover ações de formação sobre os perigos das doenças transmitidas por alimentos e cursos de higiene e segurança dos alimentos.
Os surtos de origem alimentar representam uma ameaça significativa à saúde pública em todo o mundo, inclusive em Portugal. A prevenção e controlo destes surtos exigem uma abordagem multifacetada, que envolve autoridades de saúde, profissionais da indústria e setor de alimentos, consumidores, instituições de investigação, entre outros. A implementação de boas práticas de higiene e segurança dos alimentos em todas as etapas da cadeia de produção e distribuição é essencial para reduzir o risco de surtos. Além disso, a vigilância contínua e a rápida resposta a surtos emergentes são fundamentais para minimizar o impacto na saúde pública e na confiança dos consumidores nos alimentos que consomem.
Ao enfrentarmos estes desafios de forma proativa, podemos trabalhar para garantir que os alimentos consumidos em Portugal e no mundo sejam seguros e saudáveis para todos.
👉 Sobre a SARA HACCP
A SARA HACCP é uma ferramenta tecnológica que pretende ajudar as empresas do setor alimentar a desmaterializar os processos e registos do HACCP.